O S. JOÃO  E AS RENDILHEIRAS (1934)

 

De muito longa data que o povo da nossa terra vem festejando com bem sentido entusiasmo o seu Santo Padroeiro, S. João.

            Novos e velhos, unidos numa só alegria, como se a mesma mocidade a todos  cobrisse de Sol, cantam louvores ao Santo, a quem por crença chamam casamenteiro. Novos  e velhos, sob o calor do mesmo fogo ardente, esquecendo categorias, esquecendo tudo numa comunhão sincera dum ideal puramente irmão, vão à festa, dançam na festa, cantam na festa, porque ela é de todos e para todos.  E a noite de S. João é um arraial de folia e de amor, a que outrora nem faltava a colaboração simpática das freiras do Convento de Santa Clara, que também dela com respeitoso júbilo partilhavam.

 

            Alta madrugada, quando o Céu de Portugal, com lágrimas de alegria orvalha com ternura os campos e os jardins, é ainda com arreigada crença por velha tradição, que o povo da nossa terra se organiza, e segue em ranchos a caminho da milagrosa Fonte de S. João do Convento, onde as raparigas e rapazes casadoiros, na ânsia dum matrimónio feliz, atiram as três pedrinhas prometedoras, no nicho da Fonte, na esperança de que tôdas, bem acertadas, um prenúncio de casamento milagrosamente lhes será ... Quantos sorrisos de alegria, quantos protestos de boa resignação, e quantas encobertas dores de inesperada amargura, esta interessantíssima tradição não vai levar ao coração moço  daquêles e daquelas, que num desejo veemente a não esquecem ?... Mas não acabam aqui as velhas tradições do Santo casamenteiro; e os grupos, saindo da Fonte, prosseguem agora a caminho do Mar, e , perto dele, cantam e dançam para que êle os veja e também comungue da estonteante alegria dos que alegremente o visitam.

          

           E o Mar reconhece agradecido, espraiando docemente as ondas pela areia fina, como que a jurar às raparigas que o saúdam cantando, o favor dum bom trato para os futuros  maridos que no seu vasto domínio tenham de ir ganhar o pão nosso de cada dia.

 

             Dia de S. João!

 

            Os sinos da igreja anunciam a procissão. E outro velho uso anima, na alma das raparigas, a vontade firme dum breve casamento. E umas e outras lá correm esperançadas em busca de cravos lindos para atirar ao andor do Santo. Sai a procissão. Das janelas das suas casas, elas aguardam, atentas, que o andor do seu Padroeiro passe, para lhe lançar aos pés o cravo decisivo, se aos pés a Êle com abençoada certeza, lhe cair e lá se conservar. E à sua passagem os cravos chovem, num desejo de amor que o coração de quem os atira, com sonhadora alegria, manifesta... Termina a procissão. Novo passeio à praia, nova visita ao Mar que, irrequieto e ansioso, segundo o costume já os espera. Morre o dia. O Sol esconde-se vagarosamente no Oceano, num adeus de saudades; e o Mar geme, noutro adeus, que as suas ondas dizem estendendo os braços pela areia ...

 

             Mas o povo prossegue ainda.

 

            E era antigamente na cêrca do Convento, que a sua voz, por fim, se ouvia, em também saudosa despedida para as freirinhas do Convento, que do seu Claustro, a cantar respondiam, acenando um e outras os seus lenços como se dois bandos de pombas brancas simultâneamente tentassem esvoaçar.

 

            Hoje as freiras não existem, e Vila do Conde pareceu que com elas também morrera. Assim o disse o ilustre poeta Dr. Artur Araújo num formoso improviso:

                                   

            Freiras de Santa Clara,

            Falo ninguém me responde;

            Foi com a última freira

            Que morreu Vila do Conde.

 

            E não as esquece ante as ruínas do saudoso Mosteiro, quando noutro improviso continua.

       

            Nestas ruínas saudosas

            Quando há noite de luar,

            Passam rondas misteriosas

            De freiras a soluçar!

 

            Mas ainda noutro, ao ouvir a voz das nossas rendilheiras cantando com ardor o hino do seu Orago a anunciar-lhe a festa, o sangue do Passado revive e o Poeta já canta também.

 

            Freiras de Santa Clara!

            Lindas monjas feiticeiras;

            Ainda vive a vossa graça,

            Na bôca das rendilheiras.

 

                                                                                                             Anónimo